A vida também acontece entre voos, entre momentos, entre o ontem e o amanhã. "Entre Voos" é um espaço de sentimentos feitos palavras, onde se espera pela vida como por um voo na sala de um qualquer aeroporto...
A vida também acontece entre voos, entre momentos, entre o ontem e o amanhã. "Entre Voos" é um espaço de sentimentos feitos palavras, onde se espera pela vida como por um voo na sala de um qualquer aeroporto...
Do teu jardim secreto, do teu níveo jardim secreto, que descansa na tua alma, é o que sinto mais falta… O brilho nos teus olhos, a tua voz tranquila, os braços meigos com que me abraçavas e me davas abrigo nesse jardim secreto, a pureza desse prado para onde me convidavas e, cúmplices, rebolámos e rimos e cantámos e nos amámos… Essa paz sem igual, essa certeza de te pertencer, que faz de ti o meu porto de abrigo… É do que sinto mais falta: as nossas conversas no teu jardim secreto...
Envelheceste sem eu dar por isso. Sempre olhei para ti com a mesma idade, a idade eterna dos pais. Aos nossos olhos, os pais nunca envelhecem até ser demasiado tarde e demasiado rápido. Trocámos um olhar fugaz na noite em que partiste e no teu olhar encontrei a paz de quem sabe que parte tranquilo, com tudo entendido, tudo dito, uma vida cumprida... A paz de quem sabe que, mesmo o que não foi dito foi sentido nos corações de quem se ama e de quem nos ama. Não foram precisas palavras. Afinal são os atos que perduram. As mãos dadas em silêncio, as carícias que trocamos, os silêncios que tranquilamente se instalam para serem interrompidos por gargalhadas e discussões, risos e choro, alegria e tristeza, são as memórias do palco que é a nossa vida.
Muito aprendi contigo. As constantes trocas de galhardetes entre nós mais não eram que revisitar avenidas e planícies que percorremos juntos era eu criança, calcorrear argumentos que mil vezes esgrimimos para saber que mantínhamos as nossas opiniões exatamente como na semana passada. Há coisas que não mudam. Tu nunca mudaste, vejo-te sempre na mesma, para mim continuas exatamente igual ao longo dos últimos 40 anos.
Fazes-me falta. Fazes falta. Muito mudou por aqui, algumas coisas para melhor outras nem tanto. Às perguntas que te faço, pressinto as tuas respostas irónicas no meio de um sorriso certo, muitas vezes na forma de outra pergunta. Faz parte. Abraçar a dor da ausência e fazê-la parte de nós é compreender a perenidade do “ter” e almejar “ser”. Ser-se melhor.
Mas a vida ensina-nos, melhora-nos, dá-nos a paciência e o tempo de reflexão, na certeza de que a perda de quem se ama é inevitável. Resta-nos, por isso, a valorização dos momentos, mesmo curtos, em que fomos "juntos", em que nos construímos mutuamente, em que nos testámos, em que nos amámos, em que partilhámos alegrias e tristezas, em que discutimos para logo fazer a paz... E por tudo isso, sou-te grato, a ti, à mãe e aos que partilharam momentos da sua vida comigo e que teimam em fazer parte da minha caminhada, acreditando assim na eternidade criada a partir de sopros e gestos que, em conjunto, fazem o livro da vida.
Entre nós não ficaram promessas por cumprir, nem palavras por dizer: tudo foi resolvido no devido tempo que tem lugar no espaço que medeia entre dois olhares de alma ou um sorriso cúmplice. A tua presença é, assim, eterna. Precisava que soubesses isto. E que continuo a tentar melhorar o meu voo, tal como me ensinaste, sabendo que nem sempre conseguimos o que queremos, mesmo quando damos o nosso melhor...
A diferença de horas fazem-me estar acordado enquanto tu dormes. Já passa da meia-noite aqui...
Sabes que acordo sempre contigo dentro de mim? Os meus primeiros pensamentos do dia são-te dirigidos, para tirar partido da sonolência e do calor que começa a entrar no quarto, enquanto percorro a cama de uma ponta à outra à tua procura… Que sonhos te aconchegam à noite na cama, quando te deitas? Que ausências e saudades se espalham nos teus lençóis? Que medos te incomodam e a quem dás a mão nessa altura? Que destino procura a tua pele na noite fria? Quantos dos teus sorrisos passam por mim? Como será o teu acordar? Imagino o teu beijo, o teu corpo a aninhar-se no meu, os teus primeiros olhares tranquilos e deliciosos enquanto os meus braços te puxam para mim, o teu perfume a envolver-me e o olhar dos teus olhos bem dentro dos meus...
Nunca pensei que amar fosse assim, nem que um grande amor poderia perder-se. Creio que fiz tudo mal: deslumbrei-me com o que sentia, com o que me fazias sonhar, com a perfeição dos nossos sentimentos, com a pureza dos teus olhos… “Estou com saudades de ti, meu desejo…”. É de facto muito difícil "ser" sem ti, ficar assim a olhar para o que poderia ter sido, a olhar para a imensidão do amor que transborda do meu peito todos os dias quando, de manhã, os meus braços insistem em procurar-te ao meu lado nos lençóis e a minha pele anseia pela frescura da tua…
Esta casa que é o meu coração é habitada por ti, a título definitivo, e sem espaço demarcado: todo ele é teu. Deambulas por aqui sem te fazeres anunciar, ora no perfume que a brisa me traz, ora na lembrança de uma praia onde nos amámos, ora num riso que me faz voltar a cabeça… Em tudo o que existe, és tu que me guias… Apetece-me ir ter contigo quando chegar a Lisboa, apetece-me dar-te mimo, ouvir a tua voz quente, tocar a tua pele macia, dar-te um abraço pacificador, beijar as tuas mãos...
Aceita este poema da Florbela, que transporta o meu sentimento até ti:
"Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?...
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.
Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais doidamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!
(Saudades, Florbela Espanca, "Livro de Sóror Saudade")