Apaixonarmo-nos é doar um pouco da nossa alma que sabemos nunca mais reaver...
A chuva parece ter vindo para ficar. É seu, o tempo. É ela, a chuva, que faz renascer a vida, a esperança, o mundo, é uma espécie de oportunidade para esquecer mas também para fazer as coisas novamente, uma oportunidade de recomeçar melhor, uma oportunidade para lavar o passado, levar as lágrimas que persistem na alma e as memórias que insistem em se colar à pele, escrevendo nelas novos poemas, novas histórias rabiscadas nas estradas por onde deambulamos…
Apaixonarmo-nos é ver como extraordinárias e preciosas as pequenas coisas vulgares do dia-a-dia: a cama com os lençóis brancos, amarrotados, ainda com a forma do teu corpo a reclamar o seu espaço junto do meu; é a loiça do jantar de ontem ainda em cima da mesa da cozinha, por arrumar, interrompido pela urgência do nosso amor inadiável, reclamado pela alma e pela pele; é ouvir uma criança a rir alto, de nariz sujo, que corre atrás de uma bola no recreio da escola e logo fazermos uma finta para marcar golo numa baliza imaginária; é ouvir uma música no rádio que nos faz brilhar por dentro e enviar-lhe uma mensagem a dizer que temos saudades, mesmo que tenhamos saído de casa a apenas 10 minutos atrás; é desejar “bom almoço” e aparecer de surpresa com um ramos de flores no restaurante onde ela está e sermos acolhidos com o sorriso mais fantástico do mundo; é o cheiro das castanhas a assar no final do dia e que nos faz parar para as comprar quando, apressados, regressamos a casa; são as luzes refletidas na estrada molhada enquanto pensamos no abraço apertado, à chegada, que nos voltará a deixar inteiros depois de um dia extenuante; é olhar aqueles olhos doces que nos observam, profundos, à noite, ao deitar, e sentirmos que queremos voltar a fazer tudo outra vez, e outra vez, e outra vez, como temos feito nos últimos milénios, e em cada dia ser tudo com a intensidade de uma primeira vez…
Apaixonarmo-nos é doar um pouco da nossa alma que sabemos nunca mais reaver, com a íntima convicção de que foi a melhor coisa que fizemos em toda nossa existência, nem que esse amor tenha durado apenas um segundo ou uma vida (o que é exatamente a mesma coisa). E quanto maior a dor da separação (tudo acaba, de uma forma ou de outra), maior a certeza de que foi a coisa certa, o amor que valia a pena, o amor pelo qual valeu a pena renascer para morrer. Apaixonarmo-nos é doar um pouco da nossa alma que sabemos nunca mais reaver e, com isso, tornar o habitual simplesmente extraordinário…