Esta noite vou ficar por aqui contigo, se não te importares, pode ser?
02:46 AM. A noite há muito que aqui chegou e impiedosamente se instalou nos gestos com que lentamente construo o meu tempo. À varanda, chegam-me ecos como imagens desgarradas de um filme sem sentido, fotografias arrastadas pela brisa fresca que se faz sentir e que pinta traços imprecisos de outras vidas. Ao longe, a espaços, o som de carros tardios interrompe por momentos o cricrilar que reina nesta zona da cidade.
Risos perdidos por entre os caminhos de uma madrugada de sábado, ébrios, lembram-me que a noite também pode ser dia, luz e calor. Por entre baforadas do cigarro que seguro entre dois dedos da mão direita, imagino as vidas anónimas arrendatárias dessas alegrias instantâneas, simples, eficazes, ruidosas, e aconchego o casaco sem conseguir decidir se o faço pelo frio que sinto na pele ou na alma...
O corpo pede para me render ao conforto da sala, mas prefiro o frio que me mantém acordado. Não tenho planos que ultrapassem o simples desejo de estar aqui nos próximos minutos, a desfrutar desta noite fria, preenchendo o tempo com um cigarro e um James Martin’s sem gelo. A noite reclama para si as sombras do dia e a dos nossos espaços interiores, mas de mim nada mais recebe do que a satisfação que sinto por aqui estar, tranquilo, presente.
Deixo-me invadir pela paz obscura que acalma as almas inquietas enquanto o pensamento divaga, e imagino a tua enorme gargalhada, paternalmente trocista, agora que estás sentado aí “em cima”, conhecedor do passado e do futuro destes ensimesmados mortais. É assim, noite dentro, que nos sinto mais próximos, sabes?… Esta noite vou ficar por aqui contigo, se não te importares, a contar-te os meus planos, a partilhar os meus pensamentos, para nos rirmos juntos, pode ser?...