No mar que trago dentro, és o último navio a partir...
Resgatei o olhar ao horizonte que entardecia e confirmei mais uma vez, no relógio Hugo Boss que me ofereceste, que as horas demoram a passar. “Quando o último navio partir ir-me-ei embora.” – pensei… O final de tarde junto ao rio veste as cores cinzentas das nuvens que velam o céu e sussurra brisas frescas que anunciam a chuva que se aproxima no horizonte. Para além de mim, na esplanada do café apenas está um casal de namorados sorridentes, felizes, a tomar um café enquanto, no chão, incansável entre os pés de uma cadeira, um copo de papel risca lentos movimentos de vaivém embalado pelo vento. Na marina, os barcos dançam ao sabor dos movimentos tranquilos e poderosos de uma valsa íntima de corpos bem juntos, dirigida pela ondulação. O rio, apesar de irrequieto, testemunha silenciosamente o tráfego de entradas e saídas, de e para o mar: uns barcos de pesca aqui, alguns barcos de recreio ali e, lá longe, no cais mais afastado, dois imensos navios de passageiros que acendem as suas luzes cumprimentando a noite que se aproxima, célere…
Peço um último café ao empregado que, atarefado, levanta a loiça das mesas desocupadas na urgência de fechar mais cedo, ansiando pela companhia que o espera... Vou pensando para mim que me irei embora daqui a pouco, quando o último navio partir, pois não adianta a espera: faz frio e tu não virás... Sinto que jamais virás, mas insisto em vir até aqui ao final de todas as tardes de quarta-feira, num ritual que acabou por me definir, bebendo um ou dois cafés, espraiando o olhar no horizonte, ver partir os navios dos outros e outros em navios que partem, apenas para dizer - se porventura um dia tivesses aparecido - que te amo como se ama apenas uma vez na vida: para sempre...
Que navios sulcam os mares dentro de nós? Que portos procuram? Que passageiros transportam? Quantos chegam ao seu destino? Quantos se afundam com pedaços nossos arrancados bem lá do fundo, com sofrimento?... São as memórias que tornam inolvidáveis estes navios que definem as nossas rotas, que nos definem a nós, navios que aos poucos vão partindo: os eternos pai e mãe, sempre seguros e com resposta para todos os desafios; os velozes e irrequietos filhos; o navio do primeiro amor, onde ainda se notam aqui e ali as cores da descoberta e da juventude despreocupada… E depois, incontornável e demorado, o amor por aquela que sabemos ser a última mulher da nossa vida, o último navio a partir, com aquele ranger familiar das madeiras cansadas que um dia foram eternas, os cordames quebradiços pela ação do sal de lágrimas amargas, o barulho de portas que batem empurradas pelo sopro implacável do tempo que se apropria, paciente e inexorável, dos espaços abandonados no convés onde ainda esvoaçam memórias, fragmentos de risos e fotografias amarelecidas que testemunharam a nossa paixão…
Todos nós erramos, todos nós cometemos erros... Depois há erros que, de tão graves e profundos, parecem conseguir ocultar todas as outras coisas fantásticas e acertadas que construímos juntos... Perdoar não é esquecer nem ignorar.. perdoar é ter a capacidade de ouvir o que vai dentro de nós para além dessa mágoa profunda, é sentir também a dor do outro e, nessa consciência partilhada, assumir que nenhum de nós é perfeito... é ter a certeza que, apesar dessa imperfeição, há uma pessoa ao nosso lado que está a improvisar a vida connosco o melhor que sabe, o melhor que pode, uma pessoa pela qual valeu a pena ter sentido essa dor, uma pessoa cujo amor por nós nunca esteve em causa por um minuto que fosse, a pessoa em cujo abraço encaixamos na perfeição e é capaz de nos fazer brilhar tão intensamente quanto a lua cheia, a mais linda das bolas de cristal, no céu mais estrelado de sempre...
Ajustei o cachecol que trazia ao pescoço e levantei-me para ir embora, não sem olhar uma última vez para o horizonte... Sorri, lembrando-me do sol que um dia me aconchegou no verão das tuas mãos… No mar que trago dentro, és o último navio a partir. Deixas para trás um peito aberto e eu deixo partir o mundo inteiro... Suspirei e, olhando para cima enquanto a chuva anunciada chegava, abracei a derradeira lição que a vida nos concede: a aceitação do que não podemos mudar… "Feliz ano novo, meu amor!" lancei ao vento, inundando-me com a honra que sempre consagrei ao privilégio de ter caminhado ao teu lado, com a certeza de que esse meu beijo se demoraria, eterno e apaixonado, nos teus lábios macios...
“It's a strange kind of beauty,
It's cold and austere,
And whatever it was that ye've done to be here,
It's the sum of yr hopes yr despairs and yr fears,
When the last ship sails.”