"Para sempre, é sempre por um triz..."
É noite outra vez... Passo a cara por água usando as mãos como conchas, estas mãos que foram feitas para percorrerem a tua pele e se aninharem, gentilmente, dentro das tuas... Por mais que lave e seque o rosto com a toalha que pende do toalheiro, não consigo limpar a história nem refazer o tempo... Um sorriso (triste mas, ainda assim, um sorriso) surge lentamente a partir do canto esquerdo destes lábios desertos, arrasta-se até aos meus olhos ausentes e apodera-se do rosto estranho que me observa do lado de lá do espelho...
Na cama, os lençóis imaculadamente brancos e alisados esperam por mim, esperam o calor do meu corpo cansado para dar sentido ao seu abraço terno no final de cada dia... Aqui, para além do som da água que corre ininterruptamente na fonte colocada no corredor da entrada, toda a casa se queda em silêncio e imobilidade, como se tudo tivesse ficado suspenso a partir do dia que decidiste não mais entrar por aquela porta... Ahhh, estas paredes e janelas que teimam em ser feitas de histórias tuas... Talvez seja por isso que se tornou hábito deslocar-me devagar, para não perturbar a memória dos tempos felizes, para não afastar os suspiros de prazer que se demoravam no nosso quarto enquanto, lentamente, te despojava das roupas para te fazer minha, para me fazer teu, para subirmos juntos ao Olimpo dos seres intemporais que lograram, um dia, reencontrar-se…
Os teus passos há muito que se não ouvem por aqui, mas ainda ecoam por toda a parte... O armário do meu quarto reclama regularmente pelas tuas camisas ausentes e, na dispensa, uma última embalagem de “Just Tea”, que resisto a deitar fora, prova-me que existiram noites de chá verde e cinema e abraços por baixo de um cobertor partilhado... No fim o que interessa é o amor… E no princípio também... Uma descoberta a dois e, por vezes, de forma solitária, uma história que se ganha ou perde num olhar, naquele olhar, naquele instante, naquele sopro... "Para sempre, é sempre por um triz", como canta a Ana Carolina... Mas é mesmo aí, precisamente aí, no eco desses silêncios e no espaço das tuas coisas que mais te procuro, que mais te sinto a falta, que mais me pergunto se “É perigoso a gente ser feliz”...
Desvio o olhar do espelho e por fim devolvo a toalha ao seu lugar, esta toalha que agora só serve as minhas mãos... Ahhh, o amor: esse desafio de delicadas palavras de cristal, gotas de chuva que se deitam como beijos nos lugares certos da alma, nuvens de algodão doce que enfunam velas em corajosos peitos abertos, arrepios de pele como sonhos lindos que, ao acordarmos, imediatamente se escapam por entre os dedos da consciência... Ahhh, o amor... Todo o universo contido na forma como o teu cabelo toca ao de leve no meu rosto quando te inclinas para me beijar e, nesse instante, me inunda com a luz a que pertenço desde o início dos tempos... Foi por um triz, não foi?...