A vida também acontece entre voos, entre momentos, entre o ontem e o amanhã. "Entre Voos" é um espaço de sentimentos feitos palavras, onde se espera pela vida como por um voo na sala de um qualquer aeroporto...
A vida também acontece entre voos, entre momentos, entre o ontem e o amanhã. "Entre Voos" é um espaço de sentimentos feitos palavras, onde se espera pela vida como por um voo na sala de um qualquer aeroporto...
A mesa está posta, pai, o teu lugar continua teu, mas hoje sou eu quem vai ter a honra de se sentar lá. Eu sei, não estás cá, é apenas uma cadeira, mas sentar-me ali, nesta tua casa, na tua cadeira, é tentar que o tempo hoje ande mais devagar, é tentar que em cada frase minha surja a inspiração das tuas palavras, é reviver as memórias dos natais anteriores e ouvir o eco do teu riso, é tentar que as iguarias na mesa e o fogo na lareira e a fome no coração tenham sentido, apesar de tudo, apesar das ausências...
A mesa está posta, pai, a maior parte das pessoas que amas conseguiram vir, as conversas estão animadas entre o tinir dos copos com o teu vinho tinto e o barulho dos talheres que esfiapam o bacalhau cozido com couves. Tenho a certeza que era isto que querias :o). Sei que (acredito!) daqui a pouco haverá um momento, um breve instante em que os nossos silêncios serão coincidentes porque, nesse intervalo, nesse vislumbre de paz e tranquilidade, todos estaremos a pensar em ti... Depois, nessa fátua eternidade, surpreendidos, começaremos a rir ao mesmo tempo e saberemos que passaste por ali para nos ver, para estares uns preciosos instantes connosco, para nos abraçares novamente, para nos brindares com a tua doçura e nos acarinhares com as memórias felizes, indeléveis, das estórias de uma vida cheia…
A mesa está posta, pai. Saudades tuas, por aqui... Feliz Natal…
Não consegui voo mais cedo, pelo que cheguei ao hotel passavam já das 22 horas locais. Cansado mas ainda sem sono, decidi subir até ao bar no último piso deste elegante hotel, onde nunca tinha pernoitado. Como habitualmente, o ambiente das conversas amenas e da música calma criam o ambiente que me arrasta para os acontecimentos dos últimos dias, quando fechaste a porta de casa com estrondo, ameaças e palavras duras... tão duras quanto a dor que sentias... Rejeitaste o meu olhar de incompreensão, afastaste as minha mãos estendidas que esperavam em vão o teu abraço de conciliação, obrigaste-me a parar nos lábios as palavras ébrias de amor que afloraram do meu coração e erigiste um muro de silêncio e esquecimento entre nós… Quantas palavras proferi em vão do lado de fora desse muro alto, palavras que precisei de te dizer na conversa que nunca chegámos a ter…
Se há alguém no mundo que me sabe de cor, de facto, és tu… Conheces o calor da minha pele e todas as suas imperfeições, sabes qual a verdade das minhas alegrias e a razão dos tormentos do meu coração, conheces as tonalidades da minha luz e todas as sombras e vincos da minha alma… Tu conheces o meu verdadeiro nome desde um tempo tão antigo que nem sequer há lugar para ele na memória das palavras, senão na luzência das nossas almas ou no toque pacificador que os nossos dedos geram quando percorrem o rosto um do outro, demorados e paradisíacos, faiscando de reconhecimento nos sentidos há muito adormecidos… E na tentativa de clarificar quem e o que somos, não há adjetivos nem substantivos que o consigam expor. Procuro na dissimulada comodidade das palavras a definição daquilo que só no mais fundo do nosso coração se encontra: a essência e a razão do brilho nos meus olhos quando penso em ti… Só o coração pode definir-nos e fá-lo de forma exemplar quando bate dentro de um peito que não é o nosso...
Sim, bem sei que já não habito em ti e que às nossas almas não será dada oportunidade de edificar novas memórias: não descobriremos novas rotas para navegar no infinito daquilo que somos, não criaremos novos dicionários de amor e mesmo as palavras que ainda perduram apenas deixam a sensação de nos termos olvidado de qualquer coisa marcante que, apesar de tudo, não conseguimos identificar...
Assim, contigo a ocupar o meu pensamento, pedi um whisky sem gelo, desejando estar aí abrigado na cama de nuvens e algodão doce que é o teu coração, desejando estar na tua sala, imaginando a lareira acesa onde a madeira crepita e enche o ar com cheiro de alegria e família, nessa confusão de barulhos, prendas, papel de várias cores e brincadeiras de miúdos, desejando estar nessa sala, agora, neste preciso instante, para me aproximar de ti de forma tranquila mas decidida, forçando o tempo e o barulho a pararem, só tu e eu existimos, eu sem tirar os meus olhos dos teus, tu alargando o bonito sorriso que emoldura o teu rosto enquanto me observas a aproximar, até chegar bem perto e te abraçar pela cintura fina... Depois balançar-nos-íamos numa dança lenta, quase parada, ao som de uma música que só nós dois ouviríamos, abraçando-te com a certeza de quem se apaixona todos os dias pela primeira vez pela mesma mulher, por ti, acariciando o teu longo cabelo, embriagando-me no perfume que dele emana, roubando aqui e ali mel aos teus lábios, conquistando a eternidade na luz dos teus olhos, oferecendo-te a minha vida num sussurro quente, junto ao teu pescoço perfeito: "Adoro-te tanto... Feliz Natal."
Acabei de fazer a árvore de Natal e estou satisfeito com o resultado. Na realidade todos os anos faço a mesma coisa: aquelas cinco árvores estilizadas, um enfeite de Natal prateado e as habituais luzes azuis que piscam tão devagar como os meus olhos faziam quando te viam a entrar cá em casa, na tentativa de prolongar para sempre aquele instante mágico... Não gosto menos dela pelo facto de a fazer da mesma maneira todos os anos. Na verdade, a familiaridade das suas formas conforta-me sempre que chego a casa. Da árvore, quero dizer.
Mais um ano passou e o tempo cobrou o seu tributo de forma regular e implacável… Este ano tenho mais espaço vazio ao lado da árvore. Este ano tenho menos prendas, menos abraços, menos beijos para distribuir. A árvore continua igual, plástica e brilhante, mas a roda do tempo deixou o seu rasto bem definido dentro de mim, gravado entre textos plangentes e memórias felizes…
Por vezes esquecemos que não passamos de borboletas brilhantes que saíram de um casulo neste planeta minúsculo, perdido na vastidão de um Universo em expansão, uma anomalia classificada como milagre pela improvável possibilidade de, sequer, existirmos… Agitamos as asas e pensamos que voamos, que controlamos o nosso voo quando, afinal, estamos apenas a ser impelidos pela brisa indulgente que antecede o rigor do temporal… Na realidade, deslocamo-nos entre voos descoordenados, insistindo em designar “para sempre” o raro instante efémero em que os nossos olhos encontram um sorriso e, nesse breve sopro, conseguimos voar de forma síncrona num mundo fundamentalmente assíncrono…
Com um aperto de melancolia no coração, olho para a árvore de Natal para confirmar que está tudo no sítio e, no entanto, falta tudo… Tudo desapareceu demasiado depressa, sem aviso, como quando queremos agarrar aquela água na concha das nossas mãos e ela teima em se escapar por entre os dedos… Apesar de tudo, sei que te amei em cada "hoje" como se soubesse que "amanhã" te perderia para um temporal de sentimentos que nós, borboletas que mal sabíamos voar, achámos irremissíveis ao olhar para o casulo que deixámos para trás… Acendi as luzes, azuis, que decoram a árvore, e sinto que piscam devagar, com saudade... brilham, mas não conseguem iluminar este imenso espaço vazio…