Papel de carta...
É noite dentro: já passa das duas da manhã… No ar ouve-se o zumbido reconfortante do ar condicionado que mantém aquecido o ambiente da sala, dispersando o aroma do incenso que arde no queimador em cima da pequena mesa de madeira, ao lado do sofá... Quando lhe enviou a carta, optou por fazê-lo usando o correio normal em detrimento do e-mail: não era a rapidez que lhe interessava, mas a solidez que o papel emprestava às palavras que escrevera... Na realidade, tinha a esperança de conseguir sentir quando as mãos dela, macias, abrissem a carta. Quando ela percorresse com a ponta dos dedos, devagar como era seu hábito, as linhas por ele escritas, seria o mais perto que tinham estado um do outro nos últimos meses… era como se lhe pudesse tocar novamente, através do papel de carta, ao de leve, na sua pele de algodão… Só por isso já valera a pena.
A carta seguiu logo após do Natal, mas chegou já depois da primeira semana do novo ano, demorando-se por entre os milhares de postais de boas festas que naquela altura circulam através dos correios. Era a sua forma de lhe relembrar o quanto a amava mostrando-lhe que, apesar da fragilidade do ser humano e dos erros tontos que por vezes homens e mulheres fazem, a verdadeira essência do que somos, a verdade da alma, está nas coisas simples da vida... E então tentou descrever-lhe como as coisas habituais do dia a dia o faziam lembrar-se dela e da forma deslumbrada como a amava em todas as coisas simples da vida…
Recortou pequenos corações de cartolina (como um dia fez para vestir as paredes do quarto deles) e imaginou a surpresa que lhe passaria pelo rosto quando, inevitavelmente, os corações caíssem para a mesa ao retirar a carta do envelope… Que imagens dele lhe terão passado pelos olhos nesse instante? Que saudades demoradas lhe percorreram a pele num arrepio? Quantas vezes a releu sentindo em cada palavra o mesmo aperto no coração que ele ao escrevê-la? Quantas lágrimas silenciosas acompanharam o sorriso que lhe aflorou os lábios? Quantas vezes terá acariciado o papel tentando lembrar-se da sua voz em cada palavra, do seu perfume em cada vírgula, do seu rosto em cada letra? Quantas vezes releu aqueles parágrafos até decidir guardá-la definitivamente ao pé das outras cartas, na caixa de papelão que ainda subsiste na última gaveta do seu roupeiro?...
A noite já lhe pesa nos olhos. De repente sentiu-se inundar de saudades, saudades de, ao deitar, lhe dar um beijo leve para não acordar aquele anjo, saudades de ver a sua roupa na poltrona, já preparada para se vestir rapidamente de manhã... Saudades de a ter ali, no lugar que é dela, aninhada no seu peito… Só por isso já valera a pena…