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Entre Voos

A vida também acontece entre voos, entre momentos, entre o ontem e o amanhã. "Entre Voos" é um espaço de sentimentos feitos palavras, onde se espera pela vida como por um voo na sala de um qualquer aeroporto...

Entre Voos

A vida também acontece entre voos, entre momentos, entre o ontem e o amanhã. "Entre Voos" é um espaço de sentimentos feitos palavras, onde se espera pela vida como por um voo na sala de um qualquer aeroporto...

10
Dez15

Tímidas promessas de sol...

Entre Voos

 

 

Estranhamente, o sol tinha-se escondido atrás de um céu cinzento, fazendo esquecer o dia ensolarado de ontem. Podíamos quase sentir a gotas de água a conspirar, a prepararem-se para desabar durante a manhã, fazendo jus a mais uma manhã de outono, para lá das janelas grandes do meu quarto. Acordei satisfeito, desfrutando antecipadamente do encontro que tinha para depois do almoço. Sorri… Demorei-me um pouco mais por entre os lençóis, imaginando a conversa, ensaiando perguntas e respostas como se fosse a primeira vez que sairia com alguém e, ao mesmo tempo, sem conseguir esquecer o seu perfume…

 

Vi-a ontem, novamente. Já a tinha visto por ali algumas vezes, elegante, confiante, ajeitando o longo cabelo de caracóis loiros com uma mão, os dois filhos pendurados na outra, caminhando como se toda a vida se tivesse preparado para desfilar para mim… Ou assim eu achava. De qualquer modo nunca tinha tido a coragem de lhe dirigir mais do que um “bom dia” ou “boa tarde” tímido, sorridente mas comedido, aquele tipo de cumprimento entre pessoas que sabem que só se encontram naquele mesmo sítio e que, mesmo sem se conhecerem bem, sentem que poderiam facilmente ser amigos e, quem sabe, talvez, construir uma história bonita sobre duas pessoas que se conheceram casualmente porque frequentavam a mesma esplanada ou davam aulas na mesma escola…

 

Sobressaltou-me com uma voz quente, sensual, com um inesperado “Posso ajudar?” quando eu olhava para as palavras cruzadas, e pensava para mim que naquele dia ela estava demorada… “Olá, ainda bem que chegou, estava a sentir a sua falta!” deveria ter dito… mas saiu-me um gaguejado incompreensível, do género “Não, tudo bem, sim, quer dizer, obrigado, estava só a tentar as palavras cruzadas, já agora bom dia, quer tomar café, ou se calhar já tomou, naturalmente…”, - parvo não sabes o que estás a dizer, que figura, pensei - ao que ela me respondeu, com um olhar compreensivelmente desconcertado: “Peço desculpa, não entendi, o barulho...” ao mesmo tempo que me tocava o braço com a sua mão durante um momento que me pareceu uma eternidade deliciosa, em que os meus olhos puderam tocar os dela e encontrar uma paz há muito procurada… “Eu é que peço desculpa!” – respondi mais recomposto e seguro – “Quer tomar um café?”

 

Perante a impossibilidade do momento, sugeriu que tomássemos café no dia seguinte, depois de almoço, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Concordei de imediato, satisfeito, sem conseguir evitar que um sorriso me chegasse aos lábios, e levantei-me. “Vai sair da escola, descer a rua?”, perguntei enquanto dobrava o jornal…

 

E depois falámos do tempo de outono, do prazer de aconchegar a roupa ao corpo para nos protegermos do frio, da forma como a vida louca quase não deixa tempo para que nos possamos conhecer, do gato “Pompeu” que lhe faz companhia em casa (enquanto eu guardava para mim a imagem do meu pastor alemão), do facto de já nos termos visto algumas vezes naquele local (enquanto eu guardava mais uma vez para mim que era por causa dela que as minhas manhãs começavam com o pequeno almoço ali no bar), falámos do último filme que cada um viu e de outras coisas sem sentido que trouxe para a conversa apenas para poder continuar a ouvir a sua voz e sentir a atração do seu perfume, apenas para ouvir o seu riso e observar a forma como os seus olhos se fechavam ligeiramente e de forma cativante enquanto se ria e abanava a cabeça, com os seus caracóis loiros a ondular ao sabor da brisa de outono…

 

“Ainda é cedo, não há pressa, é sábado e o nosso café é só depois de almoço!”, pensei, enquanto me decidia a levantar da cama. Despi as confortáveis calças do pijama, a T-shirt verde escura e, a caminho do banho, coloquei a tocar os "The Verve" no iPhone, enquanto as primeiras gotas de água caiam lá fora e eu sentia renascer dentro de mim sensações há muito esquecidas, como tímidas promessas de sol…

 

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20
Out15

Conseguirão as palavras falar de amor com a mesma intensidade que um sorriso num sussurro?

Entre Voos

 

 

Olho o mar tranquilo à minha frente mas apenas consigo sentir as ondas vigorosas que, sem descanso, se abatem na praia deserta que trago dentro do peito. Desvio insistentemente o olhar do horizonte sereno, neste plácido final de tarde emoldurado por um sol de outono, para o pousar na folha onde escrevo sobre o mar revolto que trago dentro…

 

Escrever é uma maneira de materializar os nossos fantasmas para os aprisionarmos na forma rigorosa e tangível das palavras selecionadas com cuidado… É como se, depois de estarem alinhados num texto, deixassem de estar dentro de nós e assim pudéssemos, com o simples amarrotar da folha, deixar que o vento se encarregasse de nos limpar o pensamento, a pele e a alma. É como se pudéssemos, finalmente, descansar, nem que apenas até ao final do dia, onde os silêncios da noite voltam ruidosos como velhos amigos cheios de notícias e palmadas nas costas, dispostos a mais uma noitada... É por isso que cada palavra que escrevemos tem mundos infinitos dentro de si, corpos reais, lugares sentidos, emoções vívidas, incessantes decisões sobre guerra e paz, vitórias e derrotas, braços caídos e gritos de alegria… Escrever é arquivar a vida, é pacificar o passado para arranjar espaço ao futuro…

 

E depois ela chegou, atraente como sempre foi, segura como sabe que é, passeando devagar junto ao pequeno muro caiado que separa a esplanada do café do areal, sem conseguir convencer ninguém que a observasse de que a única coisa que lhe interessava hoje fosse o mar lá ao longe e não as histórias inacabadas que povoavam o seu pensamento. Não me viu, claro, de tão ausente que estava, mas pouco depois ao percorrer o espaço com o seu olhar pensativo fez uma expressão de surpresa quando os nossos olhares se cruzaram, e sorriu envergonhada, como se tivesse sido possível eu ter escutado o eco das suas reflexões mais íntimas...

 

Caminhou hesitante para se sentar numa mesa perto da minha, como se desculpando das ondulações escusadas provocadas pelo seu caminhar na tranquilidade aparente do espaço que eu ocupava… “Bom dia…” sussurrou, oferecendo-me um sorriso genuíno, olhando depois para os farrapos dos meus pensamentos materializados nas frases que tinha deixado dispersas na superfície do papel. E foi a minha vez de me envergonhar, devolvendo-lhe o cumprimento num sorriso franco e dobrando a folha em cima da mesa para afastar as memórias de ti...

 

Quando o empregado me veio trazer um novo café, levou com ele as linhas amarrotadas do passado e, aproveitando o momento em que olhaste para nós, pedi-te com simpatia um lenço, apontando para os meus óculos em cima da mesa, quando o que realmente queria era abraçar-te, voltar a agarrar as tuas mãos macias (como o fiz há séculos atrás, naquela sala, com uma toalha mágica), e começar a escrever uma nova história: conseguirão as palavras falar de amor com a mesma intensidade que um sorriso num sussurro?...

 

"Então? A perder-se nas palavras ou a tentar encontrar-se nelas?"- perguntaste calmamente, com o teu habitual sorriso doce, com o teu inconfundível perfume a embriagar-me, enquanto eu mergulhava nos teus olhos e pedia que nos resgatasses... 

 

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02
Out15

Vidas desencontradas

Entre Voos

 

É quase uma da manhã... Passam 47 minutos da meia-noite para ser mais preciso. A viagem foi longa e jantei no avião. Sentado agora no átrio do hotel, num sofá preto confortável, chega-me do bar a música baixa, calma, do Tom Waits, quase despercebida no meio da animação dos grupos de amigos à volta das mesas baixas, com tampos de madeira, risos curtos que saem naturais entre amigos, palmadas nas costas fechando discursos e conclusões finais justificadas com cerveja, as gargalhadas familiares, prolongadas e bem altas que nos fazem virar a cabeça na direção do som e até sorrir, enquanto os copos tilintam e aproveitam as últimas saudações do verão que ainda se demora por este outono dentro.

 

Lá ao fundo, naquele canto do bar, ela está sozinha enquadrada pelo vestido preto justo, decote agradavelmente insinuante sem ser vulgar, sorrindo por nada, olhando em volta, pedindo emprestada a alegria que não sente, acariciando em círculos, com o dedo anelar da mão direita, a borda de um copo ainda meio de vinho tinto, unhas pintadas de vermelho, mãos pequenas e certamente macias, com dedos esguios. O batom, com cor a condizer, delineava uns lábios doces e solitários, talvez à procura de outros lábios, talvez a apaziguar o cansaço da sua viagem, talvez a pensar nos lábios que ontem beijou pela última vez, antes de embarcar. Com o olhar percorria a sala, atenta aos gestos deles, atenta à forma como as mulheres se inclinavam para os companheiros, sedutoras, talvez um pouco ébrias ou apenas a aproveitar de forma intensa momentos que sabem irrepetíveis…

 

E foi assim que, no movimento distraído da sua observação, por entre as madeixas do longo cabelo loiro, uns olhos azuis encontraram os meus e ali nos surpreendemos mutuamente, suspensos no olhar um do outro, enquanto a música continuava baixinho mas agora sobrepondo-se aos risos e ao tilintar de copos, sobrepondo-se aos segundos que se iam demorando nos ponteiros do relógio grande por cima do balcão, enquanto o nosso olhar esgrimia perguntas sem resposta, enquanto nos apaixonávamos um pelo que o outro deveria ser, enquanto os nossos rostos, simultaneamente, acomodavam sorrisos de uma cumplicidade infantil e os nossos ombros, síncronos, encolhiam o espanto deste nosso improvável encontro.

 

Sacudimos a cabeça, divertidos, cúmplices nos nossos silêncios, partilhando a tranquilidade de quem observa em segredo, beijando-nos nos copos solitários que cada um segurava, entrelaçando as mãos com que consultámos o telemóvel que sabíamos sem mensagens nem telefonemas perdidos, cada um no seu canto do mundo, partilhando naquela música e naquele espaço uma história de amor por acontecer, uma história de amor que tinha acabado mesmo antes de termos sequer cruzado o nosso olhar…

 

Ela sorriu quando passou por mim, ao sair, entregando-me um adeus acenado. Agora que tínhamos deixado de ser dois estranhos, unidos que estávamos pela música do Tom Waits e pela história de amor que tínhamos vivido, não precisámos de mais nada para dizer adeus: não cabem palavras num abraço de despedida...

 

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